{"id":1600,"date":"2016-01-04T14:01:20","date_gmt":"2016-01-04T14:01:20","guid":{"rendered":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/2016\/01\/04\/menino-23-o-filme-a-tese-e-a-licao\/"},"modified":"2016-05-18T02:08:43","modified_gmt":"2016-05-18T02:08:43","slug":"boy-23-the-film-the-thesis-and-the-lesson","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/2016\/01\/04\/boy-23-the-film-the-thesis-and-the-lesson\/","title":{"rendered":"BOY 23: THE FILM, THE THESIS AND THE LESSON."},"content":{"rendered":"

MENINO 23: O FILME, A TESE E A LI\u00c7\u00c3O. <\/strong><\/p>\n

O termo \u00e9 \u201cli\u00e7\u00e3o\u201d.<\/p>\n

A primeira li\u00e7\u00e3o: Ouvir o que \u00e9 dito naquilo que a aluna ou o aluno diz. Alunos e alunas raramente tomam a cena para dizer bobagens quando a aula \u00e9 sobre o acontecimento do nazismo e suas perman\u00eancias na atualidade. \u201cMenino 23\u201d, fruto dos resultados colhidos da tese de doutorado de Hist\u00f3ria da Educa\u00e7\u00e3o do professor Sidney Aguilar, \u00e9 um filme que nasceu em uma sala de aula, enquanto o educador ouvia o que estava sendo dito naquilo que uma aluna estava a dizer. Eu refor\u00e7o: a hist\u00f3ria do Menino 23 esteve condenada ao sil\u00eancio at\u00e9 que um professor decidiu escutar o que ele s\u00f3 poderia ouvir na sala de aula, deixando o p\u00fablico livre para se expressar.<\/p>\n

A segunda li\u00e7\u00e3o: Fazer pesquisa na intera\u00e7\u00e3o com pesquisadores mais velhos e mais jovens. Um grupo de pesquisa \u2013 nada de institucional \u2013 que ocorreria distraidamente, mas com periodicidade semanal, reunia pesquisadores experientes e inexperientes. A este grupo, Sidney e eu pertenc\u00edamos. Certa vez, durante a greve de 2007 na Unicamp, expus meu desejo de conhecer as rela\u00e7\u00f5es entre os partidos pol\u00edticos no Brasil e as pautas que historicamente sustentaram sobre educa\u00e7\u00e3o. Sidney recomendou procurar as constitui\u00e7\u00f5es brasileiras como um princ\u00edpio de estudo. Seguindo a orienta\u00e7\u00e3o, baixei em meu computador todas as Cartas e, ao percorrer a de 1934, deparei-me com afirma\u00e7\u00e3o: \u201cestimular a educa\u00e7\u00e3o eug\u00eanica\u201d. Este dado, surgido por causa da intera\u00e7\u00e3o entre pesquisadores de diferentes grupos, foi para mim um espanto. Para o pesquisador, capaz de interpretar o conhecimento, foi uma das arestas que cabia \u00e0 tese ainda aparar. A destina\u00e7\u00e3o dos 50 meninos do Rio para Campina do Monte Alegre n\u00e3o foi, enfim, somente um ato com o consentimento da religi\u00e3o, personificada pela Irmandade de Miseric\u00f3rdia do Rio de Janeiro, que funcionava no quintal do \u201cpai dos pobres\u201d (o Pal\u00e1cio da Guanabara). N\u00e3o foi tamb\u00e9m uma consequ\u00eancia apenas do que sempre foi feito no Brasil em nome da \u201csalva\u00e7\u00e3o da fam\u00edlia\u201d; foi, al\u00e9m disso, um processo alimentado pelo Estado brasileiro com base constitucional. Pesquisas posteriores, que tamb\u00e9m se originaram do contato de Sidney com amigos e colegas de pesquisa, ajudaram a aclarar a d\u00favida que ent\u00e3o pairava: na Constituinte, a proposta de incentivar a eugenia em educa\u00e7\u00e3o se originou, de fato<\/em>, do gabinete do presidente. A interven\u00e7\u00e3o sapient\u00edssima da orientadora permitiu trabalhar da melhor forma a nova informa\u00e7\u00e3o. E vale sublinhar: a pr\u00e1tica de enaltecer da Constitui\u00e7\u00e3o de 1934 como a primeira que faz men\u00e7\u00e3o \u00e0 educa\u00e7\u00e3o, deve realmente ser questionada. Antes de ser sinal de preocupa\u00e7\u00e3o efetiva do Estado em tomar a educa\u00e7\u00e3o como quest\u00e3o nacional, seu conte\u00fado \u00e9 um sintoma expl\u00edcito do \u201cracismo de Estado\u201d[1].<\/p>\n

[1] Sobre a postura afirmativa que paira sobre a Constitui\u00e7\u00e3o de 1934 no campo da educa\u00e7\u00e3o e da cultura, ver Bosi, A. \u201cA educa\u00e7\u00e3o e a cultura nas constitui\u00e7\u00f5es brasileiras\u201d. In: Cultura brasileira<\/em> \u2013 temas e situa\u00e7\u00f5es. S\u00e3o Paulo: \u00c1tica, 1987. Sobre a express\u00e3o \u201cracismo de Estado\u201d, ver Foucault, M. Em defesa da sociedade<\/em> (Curso 1975-1976). S\u00e3o Paulo: Martins Fontes, 2005.<\/p>\n

A terceira li\u00e7\u00e3o: Saber interpretar o sil\u00eancio e identificar os sil\u00eancios gritantes da hist\u00f3ria da educa\u00e7\u00e3o brasileira. O mais estridente deles \u00e9 o sil\u00eancio sobre o g\u00eanero feminino. S\u00e3o 50 meninos, cinquenta futuros homens. Podemos pensar: eram garotos porque a \u201cfam\u00edlia acolhedora\u201d desejava-os para o trabalho pesado. Isso n\u00e3o satisfaz por completo. Certa manh\u00e3, Sidney me convidou para examinar o livro de sa\u00eddas de crian\u00e7as \u00f3rf\u00e3s da Santa Casa de Campinas-SP, no mesmo per\u00edodo em que ocorreu a sa\u00edda dos 50 meninos da mesma institui\u00e7\u00e3o no Rio. Est\u00e1vamos no Centro de Mem\u00f3ria da Unicamp, numa sala improvisada. Finalmente, li o que Sidney me apontava e o sil\u00eancio se desfez: dezenas e dezenas de garotas sa\u00edam do orfanato campinense, enviadas para casas de fam\u00edlia, assim como foram encaminhados os 50 meninos da ent\u00e3o capital brasileira. Que destino tiveram estas jovens? Por que o sil\u00eancio, neste assunto, fala ainda mais alto?<\/p>\n

A quarta li\u00e7\u00e3o: Acreditar na alegria ao ler os cl\u00e1ssicos do conservadorismo. Por mais amargo que seja, \u00e9 preciso conhecer as teorias do pensamento autorit\u00e1rio ao falar contra o autoritarismo; s\u00f3 se aprende a pesquisar a barb\u00e1rie, adentrando a vis\u00e3o de mundo do conservador que defende a eugenia e outros cong\u00eaneres; deve-se perceber como ele pensa, qual \u00e9 exatamente a rede de contradi\u00e7\u00f5es em que se enla\u00e7a e qual o tra\u00e7ado da apar\u00eancia de coer\u00eancia \u00e9tica e moral que, nos bastidores, ele disfar\u00e7a.<\/p>\n

A sintaxe deste texto \u00e9 defeituosa, como a da crian\u00e7a que se encontra em puro aprendizado da l\u00edngua. Fala de li\u00e7\u00f5es, mas todas as li\u00e7\u00f5es do filme \u201cMenino 23\u201d n\u00e3o podem fazer sombra a \u201cuma li\u00e7\u00e3o\u201d, no singular: que essa experi\u00eancia n\u00e3o se repita<\/em>. O racismo na educa\u00e7\u00e3o escolar brasileira n\u00e3o \u00e9 um acidente do processo civilizat\u00f3rio da coloniza\u00e7\u00e3o; n\u00e3o \u00e9 fruto de mentes deliberadamente m\u00e1s e mesquinhas que se perpetuaram por acaso na elite e no poder, mas o resultado de um percurso. \u00c9, em suma, o rastro de viol\u00eancia de um projeto que foi preparado para o Brasil e, ainda hoje, n\u00e3o foi extinto.<\/p>\n

8 de dezembro de 2015.<\/p>\n

Fernando Bonadia de Oliveira, professor e pesquisador.<\/p>\n

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