{"id":1824,"date":"2015-10-27T19:02:27","date_gmt":"2015-10-27T19:02:27","guid":{"rendered":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/2015\/10\/27\/midia-e-preconceito-a-importancia-de-ler-e-criticar-monteiro-lobato\/"},"modified":"2015-10-27T19:02:27","modified_gmt":"2015-10-27T19:02:27","slug":"midia-e-preconceito-a-importancia-de-ler-e-criticar-monteiro-lobato","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/2015\/10\/27\/midia-e-preconceito-a-importancia-de-ler-e-criticar-monteiro-lobato\/","title":{"rendered":"M\u00eddia e Preconceito: a import\u00e2ncia de ler e criticar Monteiro Lobato"},"content":{"rendered":"

M\u00eddia e Preconceito: a import\u00e2ncia de ler e criticar Monteiro Lobato<\/strong><\/p>\n

Sidney Aguilar Filho<\/strong><\/p>\n

Nos \u00faltimos anos, a obra liter\u00e1ria de Jos\u00e9 Bento Monteiro Lobato tem sido revisitada, provocando grandes controv\u00e9rsias. Dois momentos marcantes acaloraram o debate: o primeiro suscitado pela elei\u00e7\u00e3o de Barack Obama \u00e0 presid\u00eancia dos EUA e o resgate do romance ficcional \u201cO presidente negro\u201d; e o segundo iniciado por proposi\u00e7\u00f5es de retirada dos textos de Lobato da Educa\u00e7\u00e3o B\u00e1sica no Brasil por serem considerados preconceituosos.<\/p>\n

\u201cNo per\u00edodo em que a m\u00eddia dedicou grande espa\u00e7o ao tema, tangenciava-se Lobato por outra pesquisa hist\u00f3rica, ent\u00e3o em curso\u201d (cf. AGUILAR FILHO, 2001 ). Debru\u00e7ado \u00e0 \u00e9poca sobre O<\/em> Presidente Negro<\/em>, O esc\u00e2ndalo do Petr\u00f3leo e do Ferro<\/em> e As Reina\u00e7\u00f5es de Narizinho<\/em> analisando colet\u00e2neas de cartas pessoais e \u00e1udio radiof\u00f4nico, instigou-se a vontade de divulgar texto escrito sobre o tema: Lobato e o pensamento eugenista. A op\u00e7\u00e3o pelo prudente e silencioso foi atitude que se mostrou acertada. Passada a onda, voltar ao tema adormecido tornou-se necessidade. No momento da \u201cmoda midi\u00e1tica\u201d, a divulga\u00e7\u00e3o cient\u00edfica e a cr\u00edtica liter\u00e1ria foram acompanhadas de um grande n\u00famero de an\u00e1lises perigosamente superficiais. \u201cLer ou n\u00e3o ler Lobato?\u201d ficou no centro do holofote.<\/p>\n

A quest\u00e3o \u201cler ou n\u00e3o Lobato?\u201d soa em si equivocada. Afinal, como entender a Hist\u00f3ria do Brasil no s\u00e9culo XX sem l\u00ea-lo? Em especial, como analisar a Hist\u00f3ria da Inf\u00e2ncia, da Educa\u00e7\u00e3o, do mundo editorial e da explora\u00e7\u00e3o de petr\u00f3leo e do ferro, das d\u00e9cadas de 1920, 30 e 40, sem faz\u00ea-lo? Como refletir sobre a cultura infantil das d\u00e9cadas de 1970 e 1980 sem a vers\u00e3o televisiva de suas obras infantis no S\u00edtio do Pica-Pau Amarelo<\/em>? Assim sendo, n\u00e3o h\u00e1 reflex\u00e3o cient\u00edfica que sequer cogite sua censura, se aceito que a comunidade tenha acesso. As discuss\u00f5es decorrentes da resposta \u201cn\u00e3o ler\u201d seriam: \u201cCensur\u00e1-las de qual parte da sociedade?\u201d e \u201ccomo?\u201d. As respostas parecem estar na ponta da l\u00edngua: das crian\u00e7as, cerceando seus acessos \u00e0s obras, coibindo o incentivo \u00e0 sua leitura e\/ou excluindo suas obras das bibliotecas p\u00fablicas.<\/p>\n

Independentemente das inten\u00e7\u00f5es dos que defendem parcialmente ou na totalidade tais ideias de censura, lembram Rui Barbosa e sua pol\u00edtica de destrui\u00e7\u00e3o documental da escravid\u00e3o, como se fosse poss\u00edvel apagar a mem\u00f3ria.Ou, mais importante, como se fosse desej\u00e1vel suprimi-la.<\/p>\n

Diante do inevit\u00e1vel apontamento sobre o racismo e outros preconceitos em suas obras, sobretudo nas supracitadas, o reconhecimento \u00e9 o \u00fanico sentido poss\u00edvel, mas n\u00e3o em dire\u00e7\u00e3o ao fim do caminho para as suas obras; apenas para um recome\u00e7o, com um novo olhar, cr\u00edtico. Deve-se levar em considera\u00e7\u00e3o a inser\u00e7\u00e3o socioecon\u00f4mica e cultural do autor e da obra na realidade hist\u00f3rica, uma an\u00e1lise das influ\u00eancias de Lobato na constru\u00e7\u00e3o da realidade por ele vivida e da que se fez ap\u00f3s sua morte.<\/p>\n

O racismo em Lobato, para ser compreendido, necessita de uma amplia\u00e7\u00e3o conceitual. O adjetivo \u201ceugenista\u201d mostra-se mais completo, pois engloba diferentes formas de racismos e outras v\u00e1rias formas de preconceitos. N\u00e3o basta enxergar o racismo em suas obras (entenda-se, segregacionismo de cunho euroc\u00eantrico). O conjunto preconceituoso \u00e9 bem mais amplo. No passado, era aceito ou n\u00e3o percebido (tido como comum) por amplos setores da sociedade, sobretudo nas elites econ\u00f4micas e intelectuais. Atualmente, h\u00e1 de se perceber o racismo, critic\u00e1-lo e ir al\u00e9m: \u00e9 preciso fazer o mesmo com os demais preconceitos presentes em Lobato e seus tempos. Afinal, ao olhar contempor\u00e2neo, os preconceitos de g\u00eanero (sexismo), de classe social (classismo-patrimonialismo), de forma\u00e7\u00e3o escolar (bacharelismo) e a intoler\u00e2ncia comportamental tamb\u00e9m precisam ser percebidos.<\/p>\n

As concep\u00e7\u00f5es eugenistas aparecem sistematicamente nas obras de Lobato, revelando uma maneira considerada \u00e0 \u00e9poca, por muitos, como cient\u00edfica. O termo eugenia <\/em>(\u201cboa gera\u00e7\u00e3o\u201d) foi cunhado em 1883 por Francis Galton, primo de Charles Darwin. Eugenia<\/em> seria a ci\u00eancia que lidaria com todas as influ\u00eancias que supostamente melhorariam as qualidades inatas de uma pressuposta ra\u00e7a em favor da evolu\u00e7\u00e3o da humanidade. Galton partiu de uma proposi\u00e7\u00e3o estat\u00edstica de distribui\u00e7\u00e3o de talentos entre uma dada popula\u00e7\u00e3o, para defender que o car\u00e1ter e as faculdades dos seres humanos seriam distribu\u00eddos de acordo com certas leis estat\u00edsticas. Desta forma, ele justificou que, como os c\u00e9rebros de uma ra\u00e7a-p\u00e1tria-na\u00e7\u00e3o encontravam-se principalmente em suas elites, a\u00ed se deveria concentrar a aten\u00e7\u00e3o e os esfor\u00e7os para o aprimoramento. Seria estatisticamente \u201cmais proveitoso\u201d investir nas elites e promover o \u201cmelhor estoque do que favorecer o pior\u201d. Galton procurou demonstrar que as caracter\u00edsticas humanas (inclusive as intelectuais, culturais e morais) decorriam da hereditariedade mais do que da pr\u00f3pria Hist\u00f3ria, dando in\u00edcio ao que seria conhecido como Darwinismo Social. O uso distorcido e falseado de seu pensamento agrediu a Darwin, que dele discordou publicamente e radicalmente. No entanto, o conceito distorcido foi ainda mais caro \u00e0 Hist\u00f3ria das Ci\u00eancias, pois ajudou a criar pressupostos de uma pretensa evolu\u00e7\u00e3o biol\u00f3gica\/cultural que incentivou e favoreceu diversas formas de segregacionismos. Foi na inven\u00e7\u00e3o desta tradi\u00e7\u00e3o cient\u00edfica que muitos racistas do fim do s\u00e9culo XIX e do in\u00edcio do XX se nutriram, entre eles Monteiro Lobato. A no\u00e7\u00e3o de \u201cra\u00e7a\u201d em seu sentido \u201ccient\u00edfico\u201d foi introduzida aos debates acad\u00eamicos por Georges Cuvier e a de \u201cdegenera\u00e7\u00e3o da ra\u00e7a\u201d por Arthur de Gobineau. Esses homens defenderam a supremacia do noroeste da Europa por uma pretensa superioridade racial. Essa presun\u00e7\u00e3o serviu de justificativa para imperialismo do capital europeu e estadunidense sobre o mundo. Formou-se um campo conceitual em que setores das elites econ\u00f4micas e seus intelectuais elaboraram novos conceitos a servi\u00e7o da perpetua\u00e7\u00e3o, por uma moderniza\u00e7\u00e3o conservadora, de uma sociedade de exclus\u00e3o e de explora\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Monteiro Lobato, visto por suas obras, cartas e entrevistas, pode e deve ser percebido como um defensor das ideias de eugenia, com todas as implica\u00e7\u00f5es dessa conceitua\u00e7\u00e3o. Na mesma medida, era tamb\u00e9m homem de neg\u00f3cios que n\u00e3o escondia seu cont\u00ednuo interesse pelo lucro. Ele era sistem\u00e1tico, pragm\u00e1tico e curioso nos seus variados interesses. A literatura, o petr\u00f3leo, a siderurgia e a editora foram seus neg\u00f3cios principais. Empreendimentos que lhe valeram fama, fortuna e confrontos jur\u00eddicos e pol\u00edticos. Incluindo um per\u00edodo na pris\u00e3o, menos por quest\u00f5es pol\u00edticas e mais por choques de interesses econ\u00f4micos.<\/p>\n

No Brasil, essa tentativa de naturaliza\u00e7\u00e3o do processo hist\u00f3rico atrav\u00e9s do \u201cgene\u201d ou da \u201cra\u00e7a\u201d criou um plano te\u00f3rico gelatinoso, modernizante-conservador, que subsidiou a criminologia e a antropometria de Nina Rodrigues e de Afr\u00e2nio Peixoto, deu sustenta\u00e7\u00e3o ao sanitarismo de Belis\u00e1rio Penna e de Paula Souza, influenciou a educa\u00e7\u00e3o de Capanema e Fernando de Azevedo, o higienismo\/eugenismo de Abreu Fialho, Artur Neiva e Renato Kehl, marcou o pensamento jur\u00eddico de Francisco Campos, a literatura de Monteiro Lobato e a \u201cdemocracia autorit\u00e1ria\u201d e racista de Gustavo Barroso e Oliveira Viana. In\u00fameros outros exemplos poderiam ser citados, mas estes j\u00e1 permitem uma an\u00e1lise bastante caleidosc\u00f3pica da intersec\u00e7\u00e3o do plano te\u00f3rico-cient\u00edfico com te\u00f3rico-pol\u00edtico sobre a constru\u00e7\u00e3o do Estado, da Na\u00e7\u00e3o e da \u201cRa\u00e7a\u201d na consolida\u00e7\u00e3o do capitalismo no Brasil.<\/p>\n

A obra de Oliveira Viana, quase desaparecida das bibliotecas e dos cursos de sociologia, serve como bom exemplo de como o cerceamento pode ser danoso. Sua obra, assim como a de Nina Rodrigues, outra expurgada, s\u00e3o absolutamente fundamentais para se compreender o pensamento e as pr\u00e1ticas segregacionistas do Brasil contempor\u00e2neo.<\/p>\n

Nesse sentido, torna-se importante destacar a elabora\u00e7\u00e3o intelectual que dialogou com as ideias eugenistas da \u00e9poca. Faz-se necess\u00e1rio compreender o ide\u00e1rio dos que influenciaram ou atuaram diretamente nas pol\u00edticas p\u00fablicas em defesa de pr\u00e1ticas de pressuposta eugenia e verificar como essas ideias chegaram at\u00e9 a elabora\u00e7\u00e3o das leis e nas pol\u00edticas p\u00fablicas.<\/p>\n

O per\u00edodo estudado mais produtivo e tenso de Lobato foi o da Era Vargas (1930-45), alguns anos antecedentes e outros subsequentes. Este per\u00edodo foi marcado pela urbaniza\u00e7\u00e3o, processo que se intensificou a partir da Primeira Guerra Mundial e se estendeu at\u00e9 a d\u00e9cada de 1980. Desde fins do XIX, sobretudo nos discursos e pr\u00e1ticas marcadas pelo Positivismo, o rural foi visto como puro, ing\u00eanuo, virgem, selvagem e b\u00e1rbaro, e o urbano, como corrompido, velhaco, maculado, domesticado e civilizado. Era uma vis\u00e3o dicot\u00f4mica, manique\u00edsta, por\u00e9m complexa. Nesta vis\u00e3o, os sert\u00f5es (natureza e sociedade) deveriam ser domesticados e civilizados, postos no colo, conquistados se necess\u00e1rio, por serem, puros, ing\u00eanuos e b\u00e1rbaros. Sujeitos a processos de \u201cregenera\u00e7\u00e3o\u201d por segrega\u00e7\u00e3o ou dispers\u00e3o. As \u201ccasas de campo\u201d da burguesia, os \u201cmanic\u00f4mios\u201d, as \u201ccol\u00f4nias\u201d \u201cpenais\u201d, de \u201cleprosos\u201d, de \u201ctuberculosos\u201d e \u201ceducacionais\u201d s\u00e3o alguns exemplos dessa ideia de que o rural poderia servir de \u201ccurativo aos males da civiliza\u00e7\u00e3o\u201d.\u00a0 O urbano, nesta mesma linha de racioc\u00ednio, aparece como espa\u00e7o a ser controlado, higienizado e \u201cregenerado\u201d. Os mundos do campo e da cidade possu\u00edam l\u00f3gica de interdepend\u00eancia, sobretudo entre os defensores das \u201cpol\u00edticas de eugenia\u201d.<\/p>\n

A partir da cidade, fez-se um imagin\u00e1rio do \u201cmundo rural\u201d, em que o campo apareceu \u201cpuro e regenerador\u201d, desde que sob o controle da \u201cracionalidade e da moralidade burguesa e urbana\u201d.<\/p>\n

Como em Juca Mulato<\/em> de Menotti Del Picchia (1923, p. 24)[1]<\/a>, o espa\u00e7o rural aparece como uma natureza domada ou ser domada, bruta ou infantilizada, um meio b\u00e1rbaro, de natureza e de humanidade, abandonado e ignorante. Espa\u00e7o a ser domado, colonizado para ser regenerado higienizado, como o lobatismo do Z\u00e9 Brasil e n\u00e3o o do Jeca Tatu, ou ainda, como na fazenda do cientista e professor-doutor Benson, em seu laborat\u00f3rio de alta tecnologia no meio das montanhas e dos sert\u00f5es, na obra racista O Presidente Negro<\/em> escrito em 1926[2]<\/a>.<\/p>\n

Concep\u00e7\u00f5es semelhantes acerca do espa\u00e7o rural e da sociedade camponesa foram encontradas tamb\u00e9m nos debates constituintes, nos tratados racistas, nas pr\u00e1ticas das \u00e1reas penal, assistencialista, de imigra\u00e7\u00e3o, de sa\u00fade e de educa\u00e7\u00e3o. Dentre elas, destaca-se aqui a<\/p>\n

1 – Integralista de tend\u00eancias antissemitas o autor, em refer\u00eancia ao Juca Mulato<\/em> escreveu:<\/p>\n

Como se sente bem recostado no ch\u00e3o!<\/p>\n

Elle \u00e9 como uma pedra, \u00e9 como a correnteza,<\/p>\n

Uma coisa qualquer dentro da natureza<\/p>\n

Amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,<\/p>\n

A esse desejo de viver grande e complexo,<\/p>\n

Que tudo abarca numa for\u00e7a de cohes\u00e3o.<\/p>\n

Comprehende em tudo ambi\u00e7\u00f5es novas e felizes,<\/p>\n

Tem desejos at\u00e9 de rebrotar ra\u00edzes,<\/p>\n

Deitar ramas pelo ar,<\/p>\n

Sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,<\/p>\n

O mesmo anseio de subir, a mesma leiva,<\/p>\n

O mesmo anseio de subir, a mesma seiva, romper em brotos, florescer, frutificar!<\/p>\n

2 – Habib (2003) mostrou a presen\u00e7a de um projeto de interven\u00e7\u00e3o social em parte da obra de Monteiro Lobato com forte teor racista\/eugenista.<\/p>\n

proposta de Miguel Couto de criar institutos agr\u00edcolas em regime de internato, a fim de levar todas as crian\u00e7as das zonas rurais desprovidas de escolas dos 8 anos aos 18 anos para serem posteriormente devolvidas \u201ccivilizadas\u201d \u00e0s suas casas. Este pensamento reportava \u00e0 ideia das redu\u00e7\u00f5es jesu\u00edticas do per\u00edodo colonial, acrescida das \u201cci\u00eancias\u201d e da racionalidade do s\u00e9culo XX.<\/p>\n

As \u201ccol\u00f4nias agr\u00edcolas\u201d tiveram fortes teores m\u00e9dico-racista (de \u201ceugenia\u201d para os \u201cdegenerados\u201d), educativo (civilizar, submeter e reduzir para moralizar) e capitalista (tornar produtivos). Elas compuseram, assim, a consolida\u00e7\u00e3o do Estado-autorit\u00e1rio-burgu\u00eas no Brasil.<\/p>\n

Ironia ou n\u00e3o, Jos\u00e9 Bento Monteiro Lobato, em carta ao amigo Cesidio Ambrogi, parabenizando-o pelo nascimento do filho, provavelmente de 1943, revela explicitamente essa quest\u00e3o<\/p>\n

Um filho novo! Mas isso \u00e9 lindo, porque indica mocidade e capacidade criadora. Eu, fosse Estado Novo, fazia uma lei acabando com a liberdade de procrear. Para ter filho era necessario um atestado de habilita\u00e7\u00e3o e uma permiss\u00e3o especial. A gente feia ficava proibida de reproduzir-se. Outros teriam licen\u00e7a para um filho s\u00f3. Outros, dois e tres. E alguns teriam licen\u00e7a sem limites. Voce, meu caro, entrava para este grupo. E n\u00e3o precisava produzir filhos s\u00f3 em casa \u2013 teria licen\u00e7a de fazer ro\u00e7as grandes, por montes e vales. Porque sabe ter filhos bonitos e claros. Voce, Cesidio, \u00e9 um embelezador e embranquecedor desta ra\u00e7a t\u00e3o feia e encardida. N\u00e3o me esque\u00e7o nunca do encanto que \u00e9 a tua filhinha gorda e de fala grossa (apud TIN, 2007, p. 384-385; sic<\/em>).<\/p>\n

A Narizinho Arrebitado, no original, assemelha-se muito a essa descri\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Figura 1: Capa do original de 1931 de As Reina\u00e7\u00f5es de Narizinho<\/em>.<\/p>\n

\"1\"<\/a><\/p>\n

Assim tamb\u00e9m eram o modelo de beleza e o padr\u00e3o est\u00e9tico infantil encontrado na m\u00eddia do per\u00edodo.<\/p>\n

Figura 1: Capa do original de 1931 de As Reina\u00e7\u00f5es de Narizinho<\/em>.<\/p>\n

\"2\"<\/a><\/p>\n

Fonte: Revista da Semana, ano XXV, n. 29, de 12\/07\/1924.<\/p>\n

A Revista da Semana<\/em> era uma publica\u00e7\u00e3o da primeira metade do s\u00e9culo XX. Foi, em seu tempo, um dos mais importantes seman\u00e1rios do pa\u00eds, em tiragem e em dura\u00e7\u00e3o. Era \u201c(…) uma Revista t\u00e3o acentuadamente conservadora, lida e estimada pela classe burguesa, considerada o seu \u00f3rg\u00e3o predileto (…)\u201d. Era voltada \u00e0 fam\u00edlia, e feita para a mesa de centro da sala de estar. Dela participaram \u2013 ou para ela trabalharam \u2013 alguns dos principais articulistas, cronistas, chargistas e fot\u00f3grafos brasileiros do per\u00edodo. A Revista da Semana<\/em> foi utilizada pela penetra\u00e7\u00e3o nesses setores, por sua longevidade, rara na imprensa brasileira e por sua variedade tem\u00e1tica. Ao olh\u00e1-la deste in\u00edcio de s\u00e9culo XXI, a linguagem mostrou-se evidente. Ao se procurar os preconceitos e conceitos (no sentido de concep\u00e7\u00f5es de mundo), pouco ou nada se encontram de meias palavras.<\/p>\n

Figura 3: Padr\u00e3o est\u00e9tico infantil retratado pela m\u00eddia do per\u00edodo (II).<\/p>\n

\"3\"<\/a><\/p>\n

Fonte: Revista da Semana, ano XXV, n. 29, de 12\/07\/1924.<\/p>\n

Ao relacionar uma concep\u00e7\u00e3o espec\u00edfica de est\u00e9tica do belo \u00e0 ideia de sa\u00fade e de superioridade, seus editores, anunciantes e leitores criaram um imagin\u00e1rio que comp\u00f4s o universo cultural da Capital Federal: a obesidade e a brancura-r\u00f3sea nos beb\u00eas, a retid\u00e3o e rigidez corp\u00f3rea associada \u00e0 brancura nos adolescentes, a c\u00fatis alva dos rostos e das m\u00e3os nas mulheres de silhueta esguia, o belo masculino das esculturas cl\u00e1ssicas greco-romanas. A quase aus\u00eancia de diversidade socioecon\u00f4mica, cultural, ideol\u00f3gica e est\u00e9tica produziu um som gritante acompanhado de um sil\u00eancio tamb\u00e9m muito aud\u00edvel. A revista e parte de seu p\u00fablico leitor faziam rela\u00e7\u00f5es de oposi\u00e7\u00e3o simples. Foram selecionadas as rar\u00edssimas imagens de pobreza, em geral de grande viol\u00eancia simb\u00f3lica. Algumas foram acompanhadas de textos acintosamente racistas e classistas.<\/p>\n

Figura 4: Exemplos de rela\u00e7\u00f5es de oposi\u00e7\u00e3o criadas pelas revistas da \u00e9poca.<\/p>\n

\"4\"<\/a><\/p>\n

Fonte: Revista da Semana, ano XXXIV, n. 16, de 14\/04\/1933<\/p>\n

\"4-1\"<\/a><\/p>\n

Fonte: Revista da Semana, ano XXXI, n. 16, de 05\/04\/1930<\/p>\n

\u00c9 imposs\u00edvel deixar de notar a semelhan\u00e7a de tal ideologia com as de Renato Kehl. Kehl foi um dos pensadores eugenistas que mais se dedicou \u00e0 discuss\u00e3o sobre beleza\/feiura\/eugenia. Em A cura da fealdade: Eugenia e medicina social<\/em> (publicado em 1923, por Monteiro Lobato) e em Formul\u00e1rio da belleza: f\u00f3rmulas escolhidas<\/em> (publicado em 1927 por Francisco Alves), ele conceitua o \u201cbelo\u201d e prop\u00f5e a eugenia como sua guardi\u00e3. Em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 beleza feminina, afirmou ser aquela que possui \u201cas justas propor\u00e7\u00f5es das partes, harmonia de linhas, esbelteza no talhe, delicadeza de contornos, epiderme rosada e fina, al\u00e9m dos predicados indispens\u00e1veis de sa\u00fade e robustez\u201d (KEHL, 1927, p. 15-16).<\/p>\n

Outra verifica\u00e7\u00e3o elucidativa das concep\u00e7\u00f5es ideol\u00f3gicas e est\u00e9ticas do per\u00edodo foi o encontro de um grande n\u00famero de propagandas de produtos \u201cmiraculosos\u201d para embranquecer a pele, maquiagens para tornar a c\u00fatis alva, aparelhos para modelar o nariz e produtos para alisar ou ondular os cabelos, reafirmando tra\u00e7os de uma concep\u00e7\u00e3o eugenista euroc\u00eantrica dos editores, das propagandas e dos que consumiam tal formula\u00e7\u00e3o est\u00e9tica.<\/p>\n

Figura 5: An\u00fancio \u201cAs tr\u00eas gra\u00e7as: mocidade, belleza e paisagem\u201d.<\/p>\n

\"5\"<\/a><\/p>\n

Fonte: Revista da Semana, XXXII, 31, 08\/12\/1931.<\/p>\n

A respeito dessa tem\u00e1tica, Silva e Goellner (2008) mostram a contraposi\u00e7\u00e3o entre a mulher \u201csedent\u00e1ria\u201d e a mulher \u201csaud\u00e1vel\u201d na obra de Renato Khel e suas rela\u00e7\u00f5es com as concep\u00e7\u00f5es higienistas e eugenistas no per\u00edodo. Outras imagens exemplificadoras podem ser vistas no quarto anexo do livro, intitulado O corpo feminino: Mocidade, beleza, disciplina e controle<\/em>.<\/p>\n

Figura 6: An\u00fancio do \u201cCreme de Belleza Oriental\u201d.<\/p>\n

\"6\"<\/a><\/p>\n

Fonte: Revista da Semana, XV, s. n., 27\/09\/1924.<\/p>\n

O preconceito est\u00e9tico \u2013 e seus padr\u00f5es r\u00edgidos de beleza que assolam e agride as atuais crian\u00e7as e adolescentes \u2013 possuiu uma Hist\u00f3ria pass\u00edvel de compreens\u00e3o e de transforma\u00e7\u00e3o. N\u00e3o s\u00f3 as crian\u00e7as precisam ler Lobato, mas, sobretudo, precisam ver e enxergar os preconceitos ao seu redor, desmont\u00e1-los e critic\u00e1-los. Precisam entender as causas de certos horrores da sociedade a que pertencem e ter o direito de mudar a realidade em seu cotidiano, na mesma medida em que as crian\u00e7as das gera\u00e7\u00f5es anteriores foram capazes de compreender e reproduzir o \u201cuniverso infantil\u201d do autor. As novas conseguir\u00e3o, com liberdade e apoio, compreender seu mundo e se divertir ainda mais em suas vidas, ao lerem os personagens infantis de Lobato, criticando e abandonando certas ignor\u00e2ncias dos tempos de seus pais e dos av\u00f3s.<\/p>\n

A boneca da \u201cnega maluca\u201d no colo da \u201ccocota\u201d grita racismo (e um racismo n\u00e3o reprimido), aceito para se colocar na capa da revista e, por isso mesmo, revelador do autoritarismo preconceituoso e agressivo do imagin\u00e1rio do grupo social estudado no per\u00edodo.<\/p>\n

Figura 7: Capa de um exemplar da Revista da Semana.<\/p>\n

\"7\"<\/a><\/p>\n

Fonte: Revista da Semana, ano XXXI, n. 20, de 05\/05\/1930.<\/p>\n

N\u00e3o \u00e9 negando ou escondendo o passado que se combate o preconceito. \u00c9 necess\u00e1rio constar a verdade para as nossas crian\u00e7as, sem meias palavras. N\u00e3o adianta esconder a Cuca. Assim, tamb\u00e9m n\u00e3o adianta esconder a, a Narizinho Arrebitado, Tia Anast\u00e1cia ou o Tio Barnab\u00e9.<\/p>\n

Refer\u00eancias:<\/strong><\/p>\n

CORR\u00caA, Marisa. As Ilus\u00f5es da Liberdade<\/strong>: A escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragan\u00e7a Paulista: Editora da Universidade S\u00e3o Francisco, 2000.<\/p>\n

DEL PICCHIA, Menotti. Juca Mulato<\/strong>. S\u00e3o Paulo: Monteiro Lobato & Cia, 1923.<\/p>\n

DIWAN, Pietra: Ra\u00e7a Pura<\/strong>. Uma hist\u00f3ria da eugenia no Brasil e no mundo. <\/em>S\u00e3o Paulo: Contexto, 2007.<\/p>\n

FLORES, Maria Bernadete Ramos. Tecnologia e Est\u00e9tica do Racismo<\/strong>. Chapec\u00f3: Argos, 2007.<\/p>\n

KEHL, Renato. Formul\u00e1rio da belleza<\/strong>: f\u00f3rmulas escolhidas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1927.<\/p>\n

______. A cura da fealdade<\/strong>: Eugenia e medicina social. S\u00e3o Paulo: Monteiro Lobato & Co-Editores, 1923.<\/p>\n

LOBATO, Jos\u00e9 Bento Monteiro. As Reina\u00e7\u00f5es de Narizinho<\/strong>. S\u00e3o Paulo: Companhia Editora Nacional, 1931.<\/p>\n

______. O Presidente Negro<\/strong>. S\u00e3o Paulo: Clube do Livro, 1945.<\/p>\n

______. O Escandalo do Petr\u00f3leo e do Ferro<\/strong>. S\u00e3o Paulo: Editora Brasiliense, 1956.<\/p>\n

SILVA, Andr\u00e9 Luiz Santos; GOELLNER, Silvana Vilodre. Sedent\u00e1rias e Coquettes \u00e0 margem: corpos e feminilidades desviantes na obra de Renato Kehl. Pensar e Pr\u00e1tica<\/strong>, v. 11, p. 26-36, 2008.<\/p>\n

TIN, Emerson. Em busca do lobato das Cartas<\/strong>. Tese de Doutorado, IEL \u2013 Universidade de Campinas, 2007.<\/p>\n

VIANA, Francisco Jos\u00e9 de Oliveira. Popula\u00e7\u00f5es Meridionais do Brasil<\/strong>, v. 1 e 2. Belo Horizonte\/Niter\u00f3i: Itatiaia\/EdUFF, 1987.<\/p>\n

______.\u00a0 Ra\u00e7a e Assimila\u00e7\u00e3o<\/strong>. 4.\u00aa ed. Rio de Janeiro: Jos\u00e9 Olympio, 1959.<\/p>\n

______.\u00a0 O Idealismo da Constitui\u00e7\u00e3o<\/strong>. 2.\u00aa ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1939.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

M\u00eddia e Preconceito: a import\u00e2ncia de ler e criticar Monteiro Lobato Sidney Aguilar Filho Nos \u00faltimos anos, a obra liter\u00e1ria de Jos\u00e9 Bento Monteiro Lobato tem sido revisitada, provocando grandes controv\u00e9rsias. Dois momentos marcantes acaloraram …<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":1698,"comment_status":"closed","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[49],"tags":[],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/1824"}],"collection":[{"href":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=1824"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/1824\/revisions"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/wp-json\/wp\/v2\/media\/1698"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=1824"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=1824"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.menino23.com.br\/en\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=1824"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}