Entre a luta pela memória e a covardia do esquecimento

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Entre a luta pela memória e a covardia do esquecimento

Há inúmeras reflexões, entre os pesquisadores de cinema, sobre documentários: discussões sobre seus temas, sobre sua linguagem, sua ética e poética. Em muitas delas uma preocupação real com a sua força e com a responsabilidade de um gênero que busca uma relação com a verdade e que, muitas vezes, a ficção não necessita priorizar. A verdade surge, no documentário, no contato do seu realizador com o entrevistado, ou mesmo da própria dificuldade de saber se a realidade apresentada é de fato a verdade dos fatos – como tanto nos mostrou Eduardo Coutinho. Nessas discussões, um  certo tipo de documentário muitas vezes passou a ser menos valorizado por se mostrar pretensamente pedagógico e não relativizar a verdade e o discurso do próprio filme, por se apresentar como algo totalizante e não como uma representação.

Diante das teorias de cinema e reflexões sobre o documentário, algumas produções parecem se sobressair pela importância de seus temas, por uma potência que eclipsa tais discussões. E talvez Menino 23 seja uma delas.

Menino 23 conta a história assustadora de cinquenta meninos negros que foram levados de um orfanato administrado por freiras, no Rio de Janeiro, para uma fazenda no interior de São Paulo, para trabalharem cativos, como escravos, na década de 1930. Para completar a dureza do relato, os donos da fazenda, que “adotaram” essas 50 crianças sob o pretexto de lhes darem estudo, eram de uma tradicional e rica família brasileira, os Rocha Miranda. Alguns de seus membros eram ligados ao movimento integralista e tinham relações inclusive com empresas e nazistas da Alemanha – o que justificava as suásticas em tijolos e no lombo do gado da fazenda.

O filme é felizmente pedagógico: parte do inusitado dos tijolos com suásticas encontrados acidentalmente por um habitante local, que resolve investigar sobre sua origem, para posteriormente ser seguida e aprofundada pelo historiador Sidney Aguilar, que desenvolve o tema em sua tese de doutorado na qual o documentário se baseia. A partir do achado assustador, o filme explica o contexto da época, da ascensão de ideologias nacionais e fascistas no Brasil, inspiradas em movimentos europeus e a valorização da eugenia e do preconceito com os negros que não tiveram qualquer oportunidade de inserção social com o fim da escravidão. Nessa busca pela verdade, chegam-se aos personagens de Aloísio Silva – o próprio menino 23 -, Argemiro e os familiares de outro menino da época, o número 2, remanescentes daquele grupo de 50 crianças. Um ficou até a libertação dos meninos, outro foi o único que fugiu. Deste nem mesmo a família conhecia sua própria história. Surge então a verdade triste de cada um e da nossa própria sociedade, esquecida, intencionalmente ou não, no fundo de memórias que resistem em voltar à tona.

Paralelo às imagens habituais do documentário, com visitas aos locais, entrevistas e material de arquivo, o filme conta com algumas imagens que destoam por uma beleza plástica, de imagens em preto e branco em câmera lenta, e com uma edição de som muito bem trabalhada que foge ao habitual e pode trazer incômodo a alguns puristas do cinema documentário, muitas vezes contrários a esse tipo de interferências. Essas imagens, contudo, criam uma quebra da temporalidade e do registro, que se torna representacional. Nesses momentos o filme retorna ao passado dos meninos e sua encenação de modo quase onírico, no qual parece justamente refletir a entrada em uma temporalidade distinta, aquela da memória, reverberada pelo tempo e mediada pelos traumas das lembranças. Não uma memória realmente de sonho apesar da beleza das imagens, mas de pesadelo. Paralelamente, essas imagens proporcionam momentos de uma aproximação mais sensorial do espectador com o filme onde paramos para digerir e elaborar a dura realidade apresentada, e que funciona como leitmotiv da sua questão central: o racismo no Brasil.

Em um momento como o atual, de aumento dos acirramentos e de crescimento de intolerâncias no Brasil e no mundo, é necessário também desenterrar nossas memórias. Entender que o mito do país alegre, cordial, em que todos são felizes e sem preconceitos é uma construção falsa e oportuna, que esconde nossos verdadeiros traumas e perpetua a dominação. É necessário perceber que o genocídio brasileiro no período da escravidão não apenas não pode ser minimizado como também não acabou em 1888. É necessário entender, de uma vez por todas, que a falta de inserção e justiça social para os negros, além da pusilânime negação de sua visibilidade, ainda hoje, continuaram permitindo atrocidades como as da  Guerra do Paraguai, como a desta fazenda no interior de São Paulo e no dia a dia das grandes cidades brasileiras, em nosso cotidiano.

Iguais ou mesmo piores à história da Fazenda Santa Albertina, quantas outras não estão esquecidas na memória, perdendo-se no tempo com o fim de seus atores ou mesmo com uma recusa destes, compreensível, em revolver o passado? Quantos desses personagens hoje se inseriram socialmente a ponto de poderem relatar suas histórias e denunciar a sociedade brasileira sobre o que ela é verdadeiramente? Quantas histórias são, por outro lado, muito bem lembradas pelo outro lado, pelos exploradores de sempre, que têm acesso aos meios mas que se calam covardemente diante dos seus crimes, reatualizando sua culpabilidade ao não permitir que a sociedade conheça sua história e aprenda com ela para não repeti-la? A covardia não é, evidentemente, daqueles que foram vítimas, que tentam e precisam deixar para trás os seus traumas, mas daqueles que tiram vantagem do esquecimento para manterem inabalado seu prestígio social.

Diante disso, Menino 23 é um filme felizmente pedagógico em que corajosamente insiste em não fazer do tempo e do esquecimento um aliado da injustiça e da invisibilidade da história dos negros no Brasil. Um genocídio que lhes continua a ser imposto diariamente nos campos e nas cidades, onde, por exemplo, crianças pobres que vendem balas em cruzamentos de bairros chiques recebem propostas sexuais e convites à prostituição. Enquanto isso, para uns a revolta não se justifica e, para outros, não há racismo no Brasil.

A Srª Nenê esposa de Afrânio, naturalmente não querendo reavivar feridas antigas, acha melhor esquecer toda a história. Mas se estamos realmente em busca da nossa verdade, o filme de Belisário França expõe uma pequena e indispensável parcela na tela, e nos alerta que urge resgatá-la do esquecimento. A nossa verdade real não é bonita de se ver e se investigarmos de fato, como fez o historiador e o filme, acharemos uma realidade ainda pior. Mas se nos confrontarmos com ela, talvez enfim possamos aprender a não reproduzir modelos e ter esquecimentos oportunos e seletivos. Enfim, tentar minimizar uma dívida que é impagável e de inserir socialmente a quem sempre foi privado de visibilidade e justiça, de verdade e de memória.

 

Felipe Muanis

Professor visitante no Institut für Medienwissenschaft na Ruhr-Universität Bochum, Alemanha

Professor do Departamento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-graduação em Comunicação/UFF