BOY 23: THE FILM, THE THESIS AND THE LESSON.

MENINO 23: O FILME, A TESE E A LIÇÃO.

O termo é “lição”.

A primeira lição: Ouvir o que é dito naquilo que a aluna ou o aluno diz. Alunos e alunas raramente tomam a cena para dizer bobagens quando a aula é sobre o acontecimento do nazismo e suas permanências na atualidade. “Menino 23”, fruto dos resultados colhidos da tese de doutorado de História da Educação do professor Sidney Aguilar, é um filme que nasceu em uma sala de aula, enquanto o educador ouvia o que estava sendo dito naquilo que uma aluna estava a dizer. Eu reforço: a história do Menino 23 esteve condenada ao silêncio até que um professor decidiu escutar o que ele só poderia ouvir na sala de aula, deixando o público livre para se expressar.

A segunda lição: Fazer pesquisa na interação com pesquisadores mais velhos e mais jovens. Um grupo de pesquisa – nada de institucional – que ocorreria distraidamente, mas com periodicidade semanal, reunia pesquisadores experientes e inexperientes. A este grupo, Sidney e eu pertencíamos. Certa vez, durante a greve de 2007 na Unicamp, expus meu desejo de conhecer as relações entre os partidos políticos no Brasil e as pautas que historicamente sustentaram sobre educação. Sidney recomendou procurar as constituições brasileiras como um princípio de estudo. Seguindo a orientação, baixei em meu computador todas as Cartas e, ao percorrer a de 1934, deparei-me com afirmação: “estimular a educação eugênica”. Este dado, surgido por causa da interação entre pesquisadores de diferentes grupos, foi para mim um espanto. Para o pesquisador, capaz de interpretar o conhecimento, foi uma das arestas que cabia à tese ainda aparar. A destinação dos 50 meninos do Rio para Campina do Monte Alegre não foi, enfim, somente um ato com o consentimento da religião, personificada pela Irmandade de Misericórdia do Rio de Janeiro, que funcionava no quintal do “pai dos pobres” (o Palácio da Guanabara). Não foi também uma consequência apenas do que sempre foi feito no Brasil em nome da “salvação da família”; foi, além disso, um processo alimentado pelo Estado brasileiro com base constitucional. Pesquisas posteriores, que também se originaram do contato de Sidney com amigos e colegas de pesquisa, ajudaram a aclarar a dúvida que então pairava: na Constituinte, a proposta de incentivar a eugenia em educação se originou, de fato, do gabinete do presidente. A intervenção sapientíssima da orientadora permitiu trabalhar da melhor forma a nova informação. E vale sublinhar: a prática de enaltecer da Constituição de 1934 como a primeira que faz menção à educação, deve realmente ser questionada. Antes de ser sinal de preocupação efetiva do Estado em tomar a educação como questão nacional, seu conteúdo é um sintoma explícito do “racismo de Estado”[1].

[1] Sobre a postura afirmativa que paira sobre a Constituição de 1934 no campo da educação e da cultura, ver Bosi, A. “A educação e a cultura nas constituições brasileiras”. In: Cultura brasileira – temas e situações. São Paulo: Ática, 1987. Sobre a expressão “racismo de Estado”, ver Foucault, M. Em defesa da sociedade (Curso 1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005.

A terceira lição: Saber interpretar o silêncio e identificar os silêncios gritantes da história da educação brasileira. O mais estridente deles é o silêncio sobre o gênero feminino. São 50 meninos, cinquenta futuros homens. Podemos pensar: eram garotos porque a “família acolhedora” desejava-os para o trabalho pesado. Isso não satisfaz por completo. Certa manhã, Sidney me convidou para examinar o livro de saídas de crianças órfãs da Santa Casa de Campinas-SP, no mesmo período em que ocorreu a saída dos 50 meninos da mesma instituição no Rio. Estávamos no Centro de Memória da Unicamp, numa sala improvisada. Finalmente, li o que Sidney me apontava e o silêncio se desfez: dezenas e dezenas de garotas saíam do orfanato campinense, enviadas para casas de família, assim como foram encaminhados os 50 meninos da então capital brasileira. Que destino tiveram estas jovens? Por que o silêncio, neste assunto, fala ainda mais alto?

A quarta lição: Acreditar na alegria ao ler os clássicos do conservadorismo. Por mais amargo que seja, é preciso conhecer as teorias do pensamento autoritário ao falar contra o autoritarismo; só se aprende a pesquisar a barbárie, adentrando a visão de mundo do conservador que defende a eugenia e outros congêneres; deve-se perceber como ele pensa, qual é exatamente a rede de contradições em que se enlaça e qual o traçado da aparência de coerência ética e moral que, nos bastidores, ele disfarça.

A sintaxe deste texto é defeituosa, como a da criança que se encontra em puro aprendizado da língua. Fala de lições, mas todas as lições do filme “Menino 23” não podem fazer sombra a “uma lição”, no singular: que essa experiência não se repita. O racismo na educação escolar brasileira não é um acidente do processo civilizatório da colonização; não é fruto de mentes deliberadamente más e mesquinhas que se perpetuaram por acaso na elite e no poder, mas o resultado de um percurso. É, em suma, o rastro de violência de um projeto que foi preparado para o Brasil e, ainda hoje, não foi extinto.

8 de dezembro de 2015.

Fernando Bonadia de Oliveira, professor e pesquisador.